segunda-feira, 29 de abril de 2013

AH RIDLEY, SACANAGEM PÔ!







Algo não tão atípico: Aquele sábado tedioso que encaramos eventualmente. Parada obrigatória? A convidativa locadora (sim, eu alugo filmes). Plantado, criando raízes e varizes em frente às estantes carregadas de títulos que eu esquadrinhava sem muito interesse, buscando a companhia cinematográfica da noite. Após a varredura encontrei algo que aguçou minha curiosidade: A minissérie Mundo Sem Fim, baseada no livro homônimo do Ken Follett, um escritor que acho fodástico.



O livro Mundo Sem Fim é excepcional e eu já esperava por isso quando comecei a lê-lo. Follett escreve magnificamente bem e consegue prender minha atenção fazendo com que eu grude no livro feito Marcelo D2 num charuto de maconha até a última linha. Isso aí  foi determinante pra que a minha expectativa fosse não menos monstra  para a versão televisiva. Na capa há uma referência animadora: Produzido por Ridley Scott, o cara responsável por nada mais nada menos que Gladiador, Alien, Blade Runner, e outros mais... Isso já fala por sí não é? Com essa referência bombástica anunciada, dvd em mãos, parti, feliz da vida, ansioso por assistir.

#SóqueNão. Bastou apertar o play e, poucos minutos após achar a cenografia externa interessante, acabei me perguntando o que era aquilo. A expectativa positiva se esvaneceu conforme o enredo se desenrolava diante dos meus incrédulos olhos. Gostaria de saber que tipo de alucinógeno os roteiristas usaram quando decidiram migrar de campos tão distintos. Concordo que televisão e literatura são veículos diferentes e que cada um lança mão das suas ferramentas ao se contar uma história, porém, precisavam deturpar tão exaustivamente o livro? Soou mais como plágio cretino.

Os produtores sacanearam a pequena cidade de Kingsbridge. Trollagem nível sênior.

Os personagens, com um background tão bem trabalhado pelo autor são reduzidos a uma simplicidade banal. Com frequência chegaram a trocar as falas dos personagens e eu pensava alto dizendo: Hei! Esta fala não é dele! Quando vi que assassinaram a construção dos personagens saquei que era a maior furada.  Anularam a fórmula-chave que faz com que nossa imaginação funcione: Conseguir visualizar com nitidez os sujeitos da história com suas bondades, malícias, contradições, genialidades e burrices... Sério, ficou semelhante àquelas "superproduções" mequetrefes da Rede Record.

Mundo Sem Fim, como todo romance histórico, tem seus sujeitos centrais: O artesão Merthin e seu irmão cavaleiro Ralph, Caris, filha do mercador mais rico da cidade, Gwenda, uma camponesa pobre, Godwin, o futuro prior, Thomas, o monge e ex-cavaleiro e Philemon, ex-noviço e então vice-prior. A minissérie conseguiu distribuir heresias à torto e à direito.

Alguns exemplos pra ilustrar melhor:

O Prior Godwin tem ímpetos sexuais. Completamente fora de contexto. O personagem é marcado pela devoção religiosa doentia. Ser devoto não o redime de seu lado execrável, figurando como o vilão em primeiro plano: É mau caráter, tirânico, materialista, egoísta. Sua obscuridade carola não inclui depravação sexual. Chegaram ao cúmulo de gravar uma cena em que Godwin acaricia os seios de Caris enquanto ela dorme.

Falando em Caris, na série ela é casada com Elfric, construtor oficial da catedral de Kingsbridge (vilão secundário): Aqui uma troca de papéis e distorção das características peculiares. Caris se sobressai no livro pelas suas opiniões vanguardistas, recusando-se a ser uma mulher casada e submissa. Questionadora dos valores tradicionais, sociais e religiosos. É turrona e seu temperamento inflexível é o eixo das confusões entre ela e Merthin, que formam um casal ao longo da história. Quem se casou com Elfric foi Alice, irmã de Caris, que, na série, não existe.

Merthin era aprendiz de Elfric, que logo o demitira. Até aqui tudo beleza. Só que o motivo da demissão foi trocado, e com isso, uma parte bem legal da narrativa se perdeu: Na série, o patrão tem uma crise de ciúmes por Merthin ter mais desenvoltura e competência na profissão e também por ciúmes de Caris. No livro, no entanto, é diferente: Alice e Elfric têm uma filha, Griselda. Ela e Merthin passam uma noite juntos e logo se descobriu que a moçoila engravidara. Elfric tem sim um acesso de fúria pelo talento de seu empregado e também pela “violação” de sua filha. Demitido, sem perspectivas, Merthin parte para Florença.


O desabamento da ponte de Kingsbridge: Enquanto a ponte despenca, o pânico das centenas de pessoas é bem reproduzido até darem patinadas grotescas no roteiro e há novamente uma troca de ações. Contrário ao livro, Petranilla, mãe de Godwin, mata por afogamento o Prior Anthony, o chefão da catedral. No livro isso ocorre, embora seja Gwenda quem afoga um fora da lei estuprador que a persegue após ser vendida a ele por seu pai. Petranilla é bem mais sofisticada, disposta a fazer seu filho o prior. Sua peculiaridade no livro: Ser sagaz. É uma estrategista, não uma assassina. Outra: O que causa o desastre da ponte é o peso excessivo da multidão. O que conduz todos até lá é a humilhação pública da suposta bruxa Crazy Nell e não o enforcamento de Mattie Wise. Da primeira, nem sinal, sequer uma ponta como figurante. Da segunda, uma condenação e enforcamento por bruxaria que surgiu do nada.


Kingsbridge é conhecida pela seu famoso evento anual de tecidos, a Feira do Velocino. Aqui também vi erros que, pra quem leu o livro, não deixaria de estranhar: Ralph tem seu nariz quebrado por Wulfric, noivo de Annett, (uma bela camponesa) num arranca-rabo. Ralph age grosseiramente e acaricia os seios dela, tomando em troca uma bela surra do grandalhão. Ok. Bate com o que Follett escreveu. A diferença é que na versão de tela Annett se derrete pelo arrogante cavaleiro enquanto no original ela não dá a mínima.

Isso tudo aqui no primeiro capítulo. Sobre os restantes, pelo que vi, já é possível ter uma noção de quanta coisa legal limaram. Posso até assistir aos demais episódios, sendo que desta vez já fico escaldado sem esperar nada de excepcional.

Ah, e a caracterização não foi bacana. Follett descreve fisicamente cada integrante da história e mesmo assim, a despeito destas informações, o fisique du role foi um ponto a menos também. Apenas Merthin, Madre Cecília e Godwin tiveram algo de mais interessante que correspondesse ao imaginário (ao meu pelo menos).


Enfim, eu fiquei decepcionado com o roteiro. Esperava que houvesse o mínimo de fidelidade à obra original. “Adaptação” pode não significar que se siga letra a letra uma obra literária e até pode redimir de críticas os realizadores. Mas na minha modesta opinião, se uma equipe se propõe a ter como base um livro tão legal e envolvente, porque não usufruir de um jeito mais proveitoso da narrativa? Podem ser econômicos em muitas partes pois não deve caber no orçamento e numa minissérie de uns poucos capítulos uma maçaroca de 930 páginas... Só que... Será mesmo impossível extrair as ideias bacanas de quem escreveu?

Assisti a uma entrevista do Ken Follett onde ele afirma que os leitores amaram tanto Os Pilares da Terra que ele não teve sossego até começar a escrever uma continuação (Mundo Sem Fim). Foi um trabalho prazeroso embora muito exaustivo, segundo palavras dele. Poderiam ter valorizado mais o esforço do autor ao escreverem para a TV.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom texto, parabéns. Inclusive foi ótimo pra relembrar bons momentos da história. Só faltou vc fazer uma menção honrosa a quem lhe indicou o livro, que deve ser uma pessoa muito inteligente e com bom gosto literário. Oi? bjs