Algo não tão atípico: Aquele sábado
tedioso que encaramos eventualmente. Parada obrigatória? A convidativa locadora (sim, eu
alugo filmes). Plantado, criando raízes e varizes em frente às estantes carregadas de títulos que eu
esquadrinhava sem muito interesse, buscando a companhia cinematográfica da
noite. Após a varredura encontrei algo que aguçou minha curiosidade: A minissérie Mundo Sem Fim, baseada no livro homônimo do Ken
Follett, um escritor que acho fodástico.
O livro Mundo Sem Fim é
excepcional e eu já esperava por isso quando comecei a lê-lo. Follett escreve
magnificamente bem e consegue prender minha atenção fazendo com que eu grude no
livro feito Marcelo D2 num charuto de maconha até a última linha. Isso aí foi
determinante pra que a minha expectativa fosse não menos monstra para a versão
televisiva. Na capa há uma referência animadora: Produzido por Ridley Scott, o
cara responsável por nada mais nada menos que Gladiador, Alien, Blade Runner, e
outros mais... Isso já fala por sí não é? Com essa referência bombástica
anunciada, dvd em mãos, parti, feliz da vida, ansioso por assistir.
#SóqueNão. Bastou apertar o play
e, poucos minutos após achar a cenografia externa interessante, acabei me
perguntando o que era aquilo. A expectativa positiva se esvaneceu conforme o
enredo se desenrolava diante dos meus incrédulos olhos. Gostaria de saber que
tipo de alucinógeno os roteiristas usaram quando decidiram migrar de campos tão
distintos. Concordo que televisão e literatura são veículos diferentes e que cada
um lança mão das suas ferramentas ao se contar uma história, porém, precisavam deturpar tão
exaustivamente o livro? Soou mais como plágio cretino.
Os produtores sacanearam a pequena cidade de Kingsbridge. Trollagem nível sênior.
Os personagens, com um background
tão bem trabalhado pelo autor são reduzidos a uma simplicidade banal. Com frequência chegaram
a trocar as falas dos personagens e eu pensava alto dizendo: Hei! Esta fala não
é dele! Quando vi que assassinaram a construção dos personagens saquei que era a maior furada. Anularam a fórmula-chave que faz com que nossa imaginação funcione: Conseguir visualizar com nitidez os sujeitos da história com suas bondades, malícias, contradições, genialidades e burrices... Sério, ficou semelhante àquelas "superproduções" mequetrefes da Rede Record.
Mundo Sem Fim, como todo romance
histórico, tem seus sujeitos centrais: O artesão Merthin e seu irmão cavaleiro
Ralph, Caris, filha do mercador mais rico da cidade, Gwenda, uma camponesa
pobre, Godwin, o futuro prior, Thomas, o monge e ex-cavaleiro e Philemon,
ex-noviço e então vice-prior. A minissérie conseguiu distribuir heresias à
torto e à direito.
Alguns exemplos pra ilustrar
melhor:
O Prior Godwin tem ímpetos
sexuais. Completamente fora de contexto. O personagem é marcado pela devoção
religiosa doentia. Ser devoto não o redime de seu lado execrável, figurando
como o vilão em primeiro plano: É mau caráter, tirânico, materialista, egoísta.
Sua obscuridade carola não inclui depravação sexual. Chegaram ao cúmulo de gravar uma
cena em que Godwin
acaricia os seios de Caris enquanto ela dorme.
Falando em Caris, na série ela é casada
com Elfric, construtor oficial da catedral de Kingsbridge (vilão secundário): Aqui
uma troca de papéis e distorção das características peculiares. Caris se
sobressai no livro pelas suas opiniões vanguardistas, recusando-se a ser uma mulher
casada e submissa. Questionadora dos valores tradicionais, sociais e
religiosos. É turrona e seu temperamento inflexível é o eixo das confusões
entre ela e Merthin, que formam um casal ao longo da história. Quem se casou
com Elfric foi Alice, irmã de Caris, que, na série, não existe.
Merthin era aprendiz de Elfric, que logo o demitira. Até aqui tudo beleza. Só que o motivo da demissão foi
trocado, e com isso, uma parte bem legal da narrativa se perdeu: Na série, o
patrão tem uma crise de ciúmes por Merthin ter mais desenvoltura e competência
na profissão e também por ciúmes de Caris. No livro, no entanto, é diferente: Alice e
Elfric têm uma filha, Griselda. Ela e Merthin passam uma noite juntos e logo se
descobriu que a moçoila engravidara. Elfric tem sim um acesso de fúria pelo talento
de seu empregado e também pela “violação” de sua filha. Demitido, sem
perspectivas, Merthin parte para Florença.
O desabamento da ponte de
Kingsbridge: Enquanto a ponte despenca, o pânico das centenas de pessoas é bem reproduzido
até darem patinadas grotescas no roteiro e há novamente uma troca de ações. Contrário
ao livro, Petranilla, mãe de Godwin, mata por afogamento o Prior Anthony, o chefão da catedral. No
livro isso ocorre, embora seja Gwenda quem afoga um fora da lei estuprador que
a persegue após ser vendida a ele por seu pai. Petranilla é bem mais
sofisticada, disposta a fazer seu filho o prior. Sua peculiaridade no livro:
Ser sagaz. É uma estrategista, não uma assassina. Outra: O que causa o desastre
da ponte é o peso excessivo da multidão. O que conduz todos até lá é a humilhação
pública da suposta bruxa Crazy Nell e não o enforcamento de Mattie Wise. Da
primeira, nem sinal, sequer uma ponta como figurante. Da segunda, uma condenação e enforcamento por bruxaria que surgiu do nada.
Kingsbridge é conhecida pela seu
famoso evento anual de tecidos, a Feira do Velocino. Aqui também vi erros que,
pra quem leu o livro, não deixaria de estranhar: Ralph tem seu nariz quebrado
por Wulfric, noivo de Annett, (uma bela camponesa) num arranca-rabo. Ralph age grosseiramente e acaricia os seios dela, tomando em troca uma bela surra do
grandalhão. Ok. Bate com o que Follett escreveu. A diferença é que na versão de
tela Annett se derrete pelo arrogante cavaleiro enquanto no original ela não dá a mínima.
Isso tudo aqui no primeiro capítulo.
Sobre os restantes, pelo que vi, já é possível ter uma noção de quanta coisa
legal limaram. Posso até assistir aos demais episódios, sendo que desta vez já
fico escaldado sem esperar nada de excepcional.
Ah, e a caracterização não foi bacana. Follett descreve fisicamente cada integrante da história e mesmo assim, a despeito destas informações, o fisique du role foi um ponto a menos também. Apenas Merthin, Madre Cecília e Godwin tiveram algo de mais interessante que correspondesse ao imaginário (ao meu pelo menos).
Enfim, eu fiquei decepcionado com
o roteiro. Esperava que houvesse o mínimo de fidelidade à obra original. “Adaptação”
pode não significar que se siga letra a letra uma obra literária e até pode redimir
de críticas os realizadores. Mas na minha modesta opinião, se uma equipe se
propõe a ter como base um livro tão legal e envolvente, porque não usufruir de um jeito mais proveitoso da
narrativa? Podem ser econômicos em muitas partes pois não deve caber no
orçamento e numa minissérie de uns poucos capítulos uma maçaroca de 930 páginas... Só
que... Será mesmo impossível extrair as ideias bacanas de quem escreveu?
Assisti a uma entrevista do Ken Follett onde ele afirma que os leitores amaram tanto Os Pilares da Terra que ele não teve sossego até começar a escrever uma continuação (Mundo Sem Fim). Foi um trabalho prazeroso embora muito exaustivo, segundo palavras dele. Poderiam ter valorizado mais o esforço do autor ao escreverem para a TV.